quarta-feira, janeiro 05, 2011

Meia folha

Tinha tudo para estar feliz. À excepção daquele vazio que ironicamente lhe enchia o peito. Um não sei o quê de pressentimento, de demasiada felicidade para ser realidade. Como seria possível sentir-se miserável dentro da própria felicidade daquele momento que ainda dançava perante os seus olhos, como que eternizando a efemeridade? Não era a primeira vez que acontecia. E tinha mais que razões para não deixar passar aquilo em branco. Da última vez, alguém se magoara. Da vez anterior, não fora um ''alguém'', mas sim dois. E antes ainda... nem queria pensar, estremeceu e chicoteou aquela lembrança para fora da mente. Largou a almofada e saltou pela janela para o telhado, realizando a acção inversa à de três horas antes, quando chegara a casa na noite escura e guardiã de segredos, sem que os pais soubessem. Ainda havia tempo para roubar um último olhar antes da viagem que os separaria por oito meses. Saltou pela janela para o telhado, desceu pela grade até ao chão e percorreu, quase deslizando, as magras vielas por entre as casas, que constituíam o atalho que tantas vezes percorrera nas últimas duas semanas. Subiu as escadas da casa da árvore que dava precisamente para a janela que iria inocentemente assaltar. Entrou em silêncio, aproximou-se do beliche e subiu, parecendo voar. Acordou. "Que fazes aqui?", sibilou suavemente. "Precisava de te ver antes de ires..." aquela voz suplicante... conheci-a. A razão era mais do que lhe dizia. Olharam-se nos olhos. "Que se passa?" insistiu. "Não sei. Tenho um mau pressentimento. Aconteceu quando me deixaste em casa. Ainda não dormi." Beijou-lhe a testa, em jeito de resposta de compreensão.
Duas horas mais tarde voltou para casa, fugindo da luz da aurora que seria a sua sentença, caso os pais acordassem e não estivesse em casa. Deitou-se, fingindo dormir as várias horas que tinham passado sem sono algum. Não foi preciso muito tempo para que a mãe abrisse a porta do quarto. Fingindo acordar no momento, olhou vagarosa e cansadamente a mãe: a cor fugiu-lhe do rosto. As lágrimas corriam-lhe copiosamente pela face. Sabia que se tinha passado algo, mas agora tinha medo de perguntar. "O teu irmão teve um acidente e..." disse num fio de voz que rapidamente se desmorenou antes de chegar à sentença.
A dor prendeu-lhe todos os músculos do corpo. Foi incapaz de fazer fosse o que fosse. Nem ligar-lhe para confirmar que tinha razão nos seus pressentimentos. A felicidade minada dera lugar à completa destruição interior.

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