Já passava da meia-noite quando Rafael se sentou. Estava cansado. Ser empregado de mesa não era propriamente aquilo que desejava, mas, pelo menos, andava perto dos cozinheiros, essa elite de grandes artistas munidos de faca, em vez de pincel, de prato, em vez de tela, de condimentos, em vez de tintas. E era nessa elite que Rafael sonhava integrar-se.
Mas não limitar-se a cozinhar! Criar os sabores, descobrir conjugações perfeitas, levar o cliente ao êxtase com uma simples garfada de comida. Porque não há dois sabores semelhantes, porque não se pode dizer que uma laranja e uma tangerina são parecidas, porque uma uva branca é sempre mais doce que uma preta, mas a que melhor sabe é a uva vermelha. Porque cada sabor se grava na nossa memória como uma chave para uma recordação, como daquela vez em que partilhou a sua suculenta maçã com uma menina tímida, na escola primária, que viria a tornar-se a sua melhor amiga Débora, ou daquela vez em que Simão, o seu irmão mais velho, o levara à Suíça, a provar o melhor dos chocolates, na sua origem, que se derretia lentamente na boca, deixando um sabor que ainda hoje Rafael sabia distinguir.
Assim, o primeiro passo estava dado. Já trabalhava num restaurante. Podia não ser um restaurante de primeira classe, podia não ter atribuídas cinco estrelas, mas era uma restaurante. Enquanto os pedidos dos seus clientes eram executados pelos três cozinheiros, Rafael deambulava pela cozinha, observando as técnicas e devorando as dicas que os simpáticos cozinheiros lhe davam, pois rapidamente se haviam apercebido do seu sonho. E, sobretudo, deambulava sem atrapalhar, quase deslizando entre o fogão e a mesa de preparação dos ingredientes, o que os senhores de chapéu alto e avental até apreciavam: um aprendiz que observasse o seu trabalho, desejando superar os mestres, sem os subjugar.
À noite, ou melhor dizendo, de madrugada, punha essas técnicas em prática, no pequeno apartamento onde morava. Estranhas experiências que até nem tinham mau resultado. Além disso, a janela da cozinha tinha vista directa para um esplêndido pomar de um velhote que de vez em quando passava por lá e lhe oferecia algumas frutas e legumes, em troca de poder ser o primeiro a experimentar os pratos de um futuro grande cozinheiro. Mas Rafael não tinha formação nenhuma. Nem queria. Esses, considerava, eram os verdadeiros génios por trás do avental. Porque tinham o talento agregado ao trabalho. Ninguém lhes ensinava o talento. E Débora considerava-o talentoso. Débora incentivara-o sempre a seguir aquele sonho. E até fora ela que lhe arranjara a entrevista para aquele emprego. Porque, às vezes, também precisamos de um empurrão dos amigos. E lá estava ele, a caminhar em direcção ao sonho de infância, levemente empurrado por Débora.
Mas, por agora, ali estava, sentado numa cadeira do restaurante, com a mão em cima da mesa a apoiar a cabeça cansada, a pensar em todas aquelas coisas. A pensar que amanhã seria outro dia na sua caminhada para a concretização do saboroso sonho. A pensar em mais uma estranha experiência que faria, quando chegasse a casa. A pensar em mais uma recordação, aberta pela chave de um sabor.
Mas, por agora, ali estava, a sair do restaurante sob a noite límpida e estrelada, que o incitava a lutar pelo sonho.
Posto ao Concurso de Contos da ESFV - 2009